O ser humano anseia pela explicação de sua própria existência, e nessa ânsia, busca caminhos para transformar o transitório em Eterno.
Materializou à sua imagem e semelhança, o inominável, incognoscível e inatingível, essência e razão de todas as coisas, e lhe deu o nome de Deus.
Deus, segundo o mito bíblico, modelou o Homem de barro e lhe insuflou vida, soprando nele a alma. Essa é uma ideia que pode ser convenientemente colocada como origem conceitual da cerâmica.
Na procura de um Deus que ele próprio criou, como Luz ao fim do túnel da vida, o ser humano inventou rituais e liturgias, símbolos e representações, que configuravam e preenchiam um caminho na Sua direção.
Um dos arquétipos que mais tem trazido ao Homem consolação e esperança é o da transformação. A Ciência consagrou esse conceito na realização de que na Natureza nada se perde e tudo se transforma.
Sendo o mundo espiritual parte inegável da natureza esse princípio a ele deve também ser aplicado. No catolicismo, por exemplo, de forma simbólica ou literal e conforme o grau de fé do praticante, o pão e o vinho se transubstanciam em corpo e sangue de Cristo.
Na cerâmica, o barro inerme que compõe o chão que pisamos, destituído de estrutura, direção e permanência, é levado pela inspiração transmitida pela mão, à concretização na forma, posteriormente “eternizada” pelo fogo.
Este processo é para o ceramista uma réplica do que acontece na formação vulcânica das rochas e com ele fácil é ver-se como parte integrante da natureza, oficiante dos rituais e dos fundamentos da geologia. A constatação desse fato pode levar a um imenso sentimento de vaidade ou ao recolhimento que proporciona o sacerdócio de qualquer religião. A diferença está no pronome reflexo, entre “servir-se de” ou simplesmente “servir”.
O objeto de cerâmica tem uma durabilidade física frágil e uma durabilidade química permanente. Ele pode ser destruído pelo choque mas ainda assim seus cacos irão testemunhar a época em que a queima perenizou sua forma, cor e textura.
Diz-se que a cerâmica é a mais antiga das artes. Talvez sim ou talvez não, mas de qualquer forma é aquela que mais preservou sua antiguidade, transportando-nos a idades e culturas há muito desaparecidas, numa viagem no tempo.
Nas sociedades tecnológicamente sofisticadas e espiritualmente subdesenvolvidas em que vivemos a cerâmica pode ser uma boa opção de vida. Ela se coloca em oposição militante ao consumismo desenfreado, ao imediatismo impaciente, à standardização das mentes e hábitos de vida, à
superficialidade da educação e à total alienação que a megalópole, esse monstro cancerígeno, provoca no ser humano, separado de suas raízes e perdido de seus objetivos e sentido da vida.
De forma poética podemos voltar ao tempo em que o mundo físico era explicado pelos quatro elementos, terra, fogo, ar e água, todos eles protagonistas da grande dança ritual da cerâmica, comandados pelo quinto elemento, o Grande Maestro, o Espírito, oficiando a transubstanciação da terra
em pedra e completando assim o Pentagrama, expressão geométrica e também mágica da Regra do Ouro.
Científicamente se descobriu que tudo é energia, sendo a matéria apenas ilusão dos sentidos. Isso provoca uma confluência entre a razão e o pensamento esotérico que acredita que tudo é Luz.
Recentemente alguém que conheço me dizia: não somos humanos tendo uma experiência de Luz, somos sim Luz tendo uma experiência humana.
* imagens – esculturas em cerâmica – Alberto Cidraes
Alberto Cidraes, nasceu em 1945 em Elvas, Portugal. Estudou arquitetura na Escola Superior de Belas Artes de Lisboa (ESBAL), em 1970, e parte para o Japão para fazer pós-graduação em arquitetura tradicional japonesa na Universidade de Kyushu, conhecendo e dedicando-se a cerâmica.
Em 1973 vem para o Brasil e em 1975, junto com amigos japoneses e brasileiros funda o primeiro ateliê de cerâmica artística de alta temperatura em forno Noborigama de Cunha. Montou e dirigiu o Departamento de Cerâmica do AR.CO, de 1987 a 1990, em Portugal.
Em 1993, monta, com um grupo, o programa da KIDI Kanazawa International Design Institute, filial japonesa da Parsons School of Design de NY, onde leciona até 2002. Organizou com outros ceramistas o I Festival de Cerâmica de Cunha e, em 2006, torna-se membro fundador da Cunhacerâmica e, a partir de 2009, preside o Conselho Superior do ICCC, Instituto Cultural da Cerâmica de Cunha.