Um acidente arrastou toda a minha família para a névoa
de uma tarde chuvosa do começo de 1996. No dia 2 de janeiro,
um caminhão se chocou na estrada contra o carro em que
estavam meu pai, minha mãe, meu único irmão e um amigo
da família. Morreram todos. Depois do trauma, continuei vivendo
com bem poucas e cada vez menos certezas, entre elas
a de que jamais encontraria explicação para a tragédia que
se abateu sobre o meu destino. Devo dizer que nunca cultivei
amargura nem deixei de celebrar a vida. Também não fiz estardalhaço
da dor. Procurei manter — senão oculto, pelo menos
em silêncio — um desespero contido que com o tempo
foi se diluindo em lembranças de uma família especial com a
Quando o editor Luís Colombini me convidou para discutir
com ele, numa mesa de restaurante, o projeto de um livro
contendo depoimentos de perdas, viradas e superações, eu já
levava uma resposta para ser servida depois do café. Estava
decidida a declinar do convite, naturalmente sem estragar
o jantar. Mas quis ouvir mais detalhes da proposta que ele
me mandara antes por e-mail. Talvez por tudo o que passei,
e também pelos nunca lidos manuais de autoajuda levianamente
otimistas que ganhei de gente bem-intencionada, não
me sentia a pessoa mais adequada para colher depoimentos
com conteúdo tão sensível. Teria preferido que ele me convidasse
a escrever um livro cômico. É paradoxal, mas sempre
gostei de fazer os outros rir. E acho que também gosto mais
dos tipos que me fazem rir.
“Você é a pessoa certa para fazer este livro”, sentenciou
um confiante Colombini, antes mesmo de chegar o couvert.
Eu não perguntei e ele também não revelou por quê. Não
precisava. Sem falar nada, foi então ficando claro para mim
que os motivos que me faziam desistir de um projeto como
aquele eram os mesmos que fizeram com que ele me convidasse
para a empreitada. O próprio Colombini era, naquela
noite, a personificação do entusiasmo. Ele havia recentemente
trocado uma longa e promissora carreira na grande
imprensa para assumir o risco de viver do que mais gostava
de fazer: editar e escrever livros. Meu futuro editor também
estava se reinventando. E, antes de pedir o cardápio, despejou
na mesa uma lista de sugestões de nomes que poderiam
entrar no livro que nasceu batizado de Recomeços, título
que a princípio me soou meio clichê, mas depois
me levou a rever um bobo preconceito pseudoliterário contra coisas
simples,diretas e claras, justamente a essência do bom jornalismo.
Eu me lembrei do caso de uma antiga cozinheira
da casa de meus pais que aprendeu a ler aos 51 anos.
O método adotado foi colar, numa cartilha improvisada com
papel de pão, os recortes dos dizeres das embalagens dos
produtos que usava para trabalhar. Maria França, o elegante
nome daquela ex-cortadora de cana, oito filhos e 18 netos,
acabou ficando de fora deste livro. A sua saga não seria
menos surpreendente do que a de um desses 26 depoentes,
como o pedreiro e coletor de livros que se alfabetizou aos 18
anos e ganhou apoio do BNDES para construir uma biblioteca
com projeto arquitetônico de Oscar Niemeyer.
Que fique logo esclarecido: naquele jantar, antes da primeira
garfada, eu já tinha mudado de ideia. Mal topei o desafio,
corri atrás dos depoimentos iniciais. Tive o privilégio
de ouvir ao vivo histórias extraordinárias de superação, cuja
tônica pode ser expressa em uma frase de Georgette Vidor,
a técnica de ginástica artística mais premiada do país:
“Quanto maior o limite, maior o desafio”.
Os limites podem ser físicos, como no caso de Georgette,
que perdeu o movimento das pernas num acidente de ônibus,
ou sociais, como de Luislinda Santos, primeira juíza negra dos tribunais brasileiros.
Filha de uma família humilde, a juíza baiana foi humilhada
na infância por um professor que, diante de toda a
classe, disse-lhe que era melhor ela “parar de estudar e servir feijoada em casa de branco”.
Sou grata a todas as pessoas que se dispuseram a abrir a
agenda e a alma para falar de momentos difíceis de suas vidas,
assim como a José Hamilton Ribeiro, um dos mais respeitados
jornalistas brasileiros, que gentilmente se ofereceu
para escrever seu depoimento de próprio punho.
Tive também recusas, como a de Danuza Leão, que afirmou
ter esgotado o assunto da morte do filho Samuca no seu
livro de memórias Quase tudo (Companhia das Letras, 2005)
para, lembro que falou com peso na voz, “nunca mais ter de
voltar a ele”. Marina Lima também considerava terminada
a sua “missão”, para usar uma palavra da sua assessora, de
contar ao público como controlou a depressão que quase reduziu
a pó o seu principal instrumento de trabalho: a voz
de cantora. O publicitário Washington Olivetto não se sentiu
confortável ao recapitular o sequestro que o manteve 53 dias
num cativeiro, mas fez questão de enviar sua contribuição:
a cópia da orelha que escreveu para um livro de autoria de
quatro médicos (Sergio Andreoli, Marcelo Feijó de Mello,
Jair Mari e Rodrigo Bressan) especializados em estresse pós
traumático. Olivetto foi considerado pelos especialistas um
“recuperado-símbolo”. Ele ameniza a sua responsabilidade:
“Sinceramente, como nunca me considerei completamente
são, nem antes, nem durante, nem depois do episódio, não
posso me considerar absolutamente curado agora. Por fim,
recomendo a leitura do livro que se parece, e muito, com a
vida: não é fácil, mas é fascinante”.
Entendo e respeito a opção pelo silêncio. Eu mesma costumo
falar pouco sobre a drástica experiência por que passei.
Hoje já posso falar um pouco mais, falo o tanto quanto
me perguntam, o que ainda é pouco.
Não esgotei o tema nos divãs, onde aliás nem me deitei
com desejável assiduidade, nem no ombro de amigos fiéis.
O que fiz foi ter praticado bastante exercício físico — sou
viciada em endorfina — e aumentado os vínculos com a vida:
amigos, amores, viagens, leituras, praias, cachoeiras.
Com o tempo, ainda me permitia o prazer do ócio: perdendo a
culpa de muitas vezes não fazer nada, reduzi a ansiedade e
transformei tempo perdido em tempo recebido.
Jogar conversa fora é tão bom quanto jogar cartelas
de antidepressivos e ansiolíticos no lixo, quando
finalmente é chegado esse tempo.
Quando terminava de escrever este livro, tive a sorte de
conhecer a médica e terapeuta Vânia Aguiar. Na esperança de valorizar
o livro, convidei-a a conversar sobre depoimentos aqui contidos.
Ela aceitou e suas palavras em muito enriqueceram o
conteúdo dos textos. Em seus comentários, ela usou certos
termos que, devo confessar, continuam me causando alguma
implicância, como “processo de cura”, “autodesenvolvimento”,
“resgate da individualidade” e outros afins do misterioso
dicionário terapêutico. Mas agradeço a ela por ter me reconciliado
com outra palavrinha que antes julgava pernóstica e
agora se tornou quase minha amiga: “resiliência”. Para quem
não conhece o significado, que é derivado da Física, resiliência
é a capacidade dos corpos de recuperar sua forma original depois
de um forte impacto, uma deformação, um trauma. Este
livro está cheio disso.
O escritor Jerome D. Salinger autor de O apanhador no campo de
centeio,uma metáfora da perda da inocência e um dos livros que
marcaram minha adolescência, disse que as pessoas que mais valiam
a pena conhecer já tinham perdido alguém importante.
Eu tenho amigos bem jovens, com quem
adoro conviver, que ainda não perderam nada de significativo
na vida. É claro que gostaria de ser como eles. Há um
atraente frescor em quem ainda não aprendeu — se é que se
aprende — a fazer despedidas, da mesma forma que existe
um fundamental sentimento de conquista para quem “conseguiu
seguir em frente de cabeça erguida”. Relendo essa
última expressão, o jargão me incomodou. Mas alguém conhece
uma postura mais confortável e profilática de tocar em
frente sem perder a cabeça?
Lina de Albuquerque completou o curso de Jornalismo na PUC-SP e deixou pela metade o de Filosofia e um mestrado na USP. Trabalhou nas revistas Veja, Claudia e nos jornais O Estado de S.Paulo e Jornal do Brasil. Foi subeditora de IstoÉ e editora da revista Marie Claire, onde ganhou o primeiro prêmio Ayrton Senna de Jornalismo, com a reportagem A Dança das Severinas.
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