Vilém Flusser provoca. Um provocar do pensamento que se desdobra em várias facetas.

Em 1962 publicou no jornal O Estado de São Paulo o ensaio titulado “Do tempo e de como ele acabará” , onde explora o conceito do tempo objetivo e subjetivo. Este ensaio foi escrito e publicado após ter escrito o livro “A Historia do Diabo” (1958), que publicou no Brasil somente em 1965. Mas foi neste livro que iniciou sua exploração do conceito do tempo usando a figura do Diabo
como alegoria. Mais tarde, durante as décadas de 70 e 80, desenvolveu outra imagem do tempo, baseada na física quântica e informática–o tempo como abismo. Criou uma imagem do tempo que se desmancha na zero-dimensionalidade,composto de calculi que agrupam e desagrupam dando forma à tudo o que existe.
Esta é a imagem de um tempo amorfo,que não concebe o principio de um começo, meio e fim e que caracteriza a realidade pós-histórica. Mas neste texto inicial de 62, Flusser explora as diferentes correntes de pensamento e suas interpretações do tempo, e por final cria um primeiro esboço de uma teoria própria.
Em sua divisão do tempo enquanto tempo objetivo e subjetivo, o tempo da matéria e o tempo da memória, apresentam-se para Flusser duas imagens claras: a imagem de um tempo linear de eventos sucessivos e a imagem de um tempo guardado na memória, de eventos que se misturam, quebrando assim a linha do tempo vivido. Diz ele portanto que a morte é o limite do tempo subjetivo e a entropia o limite do tempo objetivo. Na morte do organismo que também significa morte térmica, sugere a imagem de um ponto final.
Mas é possível ir-se além desta imagem se apenas trocarmos o angulo de visão.
Por exemplo: hoje em dia é possível formular o conceito de que a entropia é na verdade o verdadeiro objetivo da vida, e não a vida em si.
Ou seja: sem decadência orgânica não haveria vida na terra. A vida existe para que possa ser decomposta, assim servindo de combustível para vida nova. Pesquisas na área da biologia, mais especificamente em relação à decomposição da matéria orgânica, demonstra que durante a decomposição os átomos que constituíam o organismo são reciclados e retornam em novos organismos vivos. Ou seja: átomos são continuamente reciclados. Todos os átomos que formam nosso organismo já passaram por vários outros organismos durante a historia da Terra. Seria portanto perfeitamente possível especular sobre a possibilidade de conter em nossos corpos átomos que um dia já fizeram parte de diversos outros organismos, tais como dinossauros, peixes, plantas, etc. Não só atravessando as barreiras das espécies (se realmente somos essa mistura de átomos que já foram tantas outras coisas, como que ainda podemos manter uma visão antropocêntrica em relação à vida?), mas também mais importante, a barreira do tempo. Portanto de um ponto de vista biológico atual, o modelo do tempo cambia novamente. Mas
desta vez o modelo não pode ser tão objetivo como o da roda ou o da flecha em voo. Neste novo modelo, não só o modelo do tempo circular, como também o modelo do tempo em linha reta se desmancham e o que surge é a imagem de um tempo amorfo, caótico – a visão da decomposição material se vista do ponto de vista atômico e subatômico, demonstra que assim como Flusser propõe, o tempo compõe-se de instantes (pérolas), mas proponho que estas não se alinham em fio formando um colar assim como ele sugere, porque colar ainda sugere não
só linha reta, de eventos sucessivos que seguem o fio, mas também moção circular.
Nesta visão de tempo em campo zero-dimensional, tanto o tempo objetivo como o subjetivo dissolvem-se um no outro. No entanto, do ponto
de vista subjetivo, ainda tenho a experiência do tempo de forma linear – o que vivi de acordo com os anos e com a sequência de eventos.
E com isso, sim, poder-se-ia dizer que o tempo adquire esse aspecto “colar de pérolas” ao pensar ou tentar visualizar o tempo através da mente. Mas o problema que se apresenta rapidamente é que uma vez passado ao nível da memoria, o tempo se desmancha, o fio do colar rompe e as pérolas voam soltas pelo espaço da memoria. Lá, até mesmo as pérolas se desmancham, e assim como átomos, revelam um mundo interior vasto, um cosmos. De fato, coisas acontecem a mim. Mas a partir do momento em que essas “coisas”, “eventos” ou qual seja o termo preferido, passam a habitar a dimensão da memoria, lá nem o modelo linear nem o circular dão conta de representar para mim o “tempo”.
Na memoria, a imagem do tempo como “campo” é mais adequada. Porque lá, após o desmanche do colar e a desintegração das pérolas,
não se trata mais apenas de fluxos ou processos, mas também de agrupamentos, amalgames, misturas, e seus reversos. Aquilo que vivi aos quatro anos de idade se mistura com aquilo que vivi ontem e ainda aquilo que projeto como possíveis vivências futuras. O tempo objetivo
impõe-se à mim, mas o tempo subjetivo não só parte de mim, mas está sujeito à mim, ou seja, eu o crio e descrio ao sabor do momento.
E dentro disto surge a questão da realidade, pois se o tempo objetivo que impõe-se à mim cria a realidade, então eu, ao subjetivar esse mesmo tempo e ao fazer dele minha matéria prima, crio então minhas realidades ao meu próprio ritmo.
O raciocínio portanto sobre a possível estrutura do tempo demonstra claramente, assim como Flusser sugere, que o tempo acabará
através da razão. Ou seja: ao desenvolvermos a cada dia, “melhores” e mais sofisticados modelos para compreender o tempo,
acabaremos portanto desmanchando-o. Mas a fé na imortalidade à qual Flusser aponta, permanece, independentemente de qual seja
a estrutura vigente da nossa visão do tempo. Porque seja essa qual for, não altera a nossa crença e esperança de que o futuro se fará
presente mesmo quando formos passado.
imagem banner: Jean- Michel Basquiat/ Riding with dead

Rodrigo Maltez Novaes é formado pela University of Gloucestershire e pós-graduado pela University of the Arts na Inglaterra, é artista plástico e Doutorando na European Graduate School e na Universität der Künste Berlin. Atua nas áreas de pintura, filosofia, mídia e comunicação e atualmente vive e trabalha em Berlim
onde desenvolve projeto de pesquisa sobre a obra e o pensamento de Vilém Flusser junto ao Acervo Vilém Flusser com a orientação do Prof. Dr. S. Zielinski.
Em 2011 publicou em New York, pela Átropos Press, sua tradução da primeira versão em inglês da obra Vampyroteuthisinfernalis de V. Flusser.
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