1- Fico espantado com a loucura das pessoas, destrambelhadas em seu mundo e tão convenientemente adaptadas às suas próprias incongruências. A autoimagem sempre benevolente para nunca ferir a vaidade. Eventos vergonhosos ganham versões condescendentes, quase distorcidas.
Não totalmente distorcidas somente para que o sujeito possa sustentá-las baseado em ‘argumentos’.
Abandonos humilhantes se modificam convertendo-se em posições éticas cheias de propósitos elevados; mesquinhez transforma-se em dádiva; incompetência e falta de esforço se transmutam em ‘opção’ ou crítica social; o pior defeito vira artigo de exibição e vantagem… Talvez ninguém
sobrevivesse se pudesse se enxergar como realmente é, livre de atenuantes.
Por muito tempo, achei que deveria avisar, sem desconto, da verdadeira versão da história, da qual o sujeito se protege, do verdadeiro rosto do amigo, de seu pior ângulo. Achei que seria um bom serviço para a humanidade, doar a verdade aos outros, especialmente àqueles com quem me importo. Seria ‘terapêutico’. ‘Analítico’! Demorei a me dar conta que isso só fazia aumentar a lista de ex-amigos, que ninguém quer saber da versão comprometedora, sobre a qual generosa e gratuitamente me propunha a alertar. As pessoas se sentem agredidas ao serem informadas da nossa real percepção. Querem palavras doces, enganadoras, complacentes, hipócritas, mantenedoras da ordem.
Mas há exceções, poucas, pouquíssimas, há quem reconhece rápido qualquer deslize pessoal, e diz a frase redentora, única saída digna: “que horrível que eu sou!”. Pessoas que suspeitam de si são as melhoras. As que têm dúvidas e não certezas. Pois, na maioria das vezes, o cardápio é a teimosia de versões benignas relativas a fatos estapafúrdios.
“Não me sinto orgulhoso disto”, é o máximo que se ouve de alguém, ao referir-se a alguma falta feiíssima de sua autoria! ‘Eufemismo’ é o nome, não?
Trata-se de suavizar, atenuar, acolchoar o peso das coisas; no dicionário, substituir uma palavra rude [ou desagradável ou grosseira] por outra, educada. Não raramente, entretanto, nessa operação, a verdade escoa pelo ralo: o bebê vai embora junto com a água do banho… Vai o anel, e o dedo também.
Já comigo, creio que isso não se aplica, pois minha mãe sempre diz que sou bonito e bonzinho. Mesmo assim, confesso que o mundo não tem sido tão justo comigo.
2- O Outro é inatingível, embora a gente se esforce!
O Outro é impossível de metabolizar. Ele faz vinculação com o traumático, com o irredutível à mesmidade.
O Outro habita o território complicado da outridade. Por ser singular de maneira cabal, o heterogêneo esmagaria o sujeito que busca percebê-lo. De fato, a percepção precisa ser sempre secundária: na teoria da psicanálise, o recalque primário dá conta desta questão. Atravessada pela história do sujeito, e pelo seu desejo, a percepção é enviesada desde o princípio. Para os humanos, assim, os objetos do mundo são objetos ‘para-si’ e nunca ‘em-si’.
3- Kiwi! Em 1987 não havia kiwi. Pelo menos eu nunca tinha ouvido falar. Cheguei na casa de um amigo e vi em cima da mesa um croquete peludo. Isso é um kiwi, disse o amigo. Ao abri-lo, notei que parecia um pepino. Ao experimentar, o gosto era de morango. ‘Você perdeu a chance de apreciar o kiwi em sua singularidade’, disse o amigo. ‘Ao recobri-lo com o já-sabido, não apreciou esta fruta na sua especificidade…’. Mas como fazer se eu tenho uma história da qual não escapo?? [hoje esse engraçadinho metido a filósofo da epistemologia é ex amigo].
4- Disse Freud: ‘todo aquele que não teve sua necessidade de amor inteiramente satisfeita, está fadado a dirigir-se a cada novo objeto com ideias libidinais antecipadas’. Não seria esta uma boa definição do fenômeno da transferência?
Precisamos recobrir o mundo com camadas de redundância para torná-lo palatável! O Outro é aquele que não obedece ao script que escrevemos. É aquele que constantemente nos expulsa de um lugar de conforto. Desmancha-prazer. O mundo é habitado por um bando de desaforados!
5- A propósito, disseram os poetas:
If you had no name
If you had no history
If you had no books
If you had no family
If it were only you
Naked on the grass
Who would you be then?
This is what he asked
And I said I wasn’t really sure
But I would probably be
Cold
And now I´m freezing
Freezing.
From Philip Glass and Suzanne Vega.
foto banner: Elza Tamas
Sergio Zlotnic é psicanalista, doutor em psicanálise pela USP e colunista mensal do portal da SP Escola de Teatro. É professor do curso ‘diálogos psicanálise/teatro’ na mesma escola e pesquisador de temas que conectam o campo das artes e as contribuições freudianas.